domingo, 21 de fevereiro de 2010

SEGREDOS DE MULHER - Déa Januzzi

Ela descobriu que gosta de cuidar do outro, mas não sabe se cuidar. Ela esteve muito tempo empenhada em cuidar do filho, depois da mãe, hoje cuida da cachorra Frida, dos passarinhos, muito mal das plantas, mas gosta mais de cuidar de pessoas que sofrem, que estão precisando de ajuda. Outro dia, foi parar na casa dela uma pessoa que estava sofrendo por causa de um relacionamento amoroso. Ela acolheu essa pessoa em casa, deu-lhe abrigo, mesmo que não pudesse fazer o milagre de esse amor voltar para os braços dela.

Cuidar é feminino, lembra colo, chá quente na cama, flores no vaso, lembra comida de mãe, biscoitos e pudim de leite condensado de avó. Cuidar tem a ver com o xale que as mulheres põem sobre os ombros. Lembra o sagrado feminino, que não é explícito, escancarado, que não pode e não deve ser divulgado para todo mundo. “O sagrado feminino fica guardado na dobra do manto”, ensina Magui, sua amiga da montanha, que ouve o clamor da terra e canta para ela.

Ela pensa que hoje está sem a função de cuidar do outro, apesar de o filho ainda estar bem perto dela, não necessita mais de mãe, mas de uma pessoa próxima que o acolha quando precisar. A mãe dela também partiu depois de se deixar cuidar pela filha, que acha que deveria ter feito mais, principalmente ter aprendido com ela a fazer crochê, tricô e a cozinhar para quando chegar o momento maior da solidão. Quem borda e tece nunca está só. Quem cozinha alimenta a alma, nutre o corpo e o espírito, faz conexão com a afetividade. É por isso que ela tem medo de ficar só e não saber tecer pontos de cruz.

Ela gosta mesmo é de cuidar de outro ser, de ler poemas em voz alta para espantar a dor do outro. Gosta de conversar com quem tem algo a dizer. “Não é papo de maritaca, não. É papo de águia para águia”, diz sua amiga da montanha, que tem sempre muito a ensinar, um livro a indicar, uma terra para cuidar, um jardim para plantar, um fogão a lenha para acender, um tambor para tocar, um pão para amassar e multiplicar, uma dádiva para oferecer.

Cuidar tem a ver com entrega, com o secreto que se oferece ao outro como parte de si mesmo. Cuidar é compartilhar, mesmo que em silêncio, é sussurrar para outra mulher os segredos bem guardados do feminino.

Cuidar é entender a imagem do Cristo xamânico, com uma pena de índio nos cabelos e uma águia nos ombros. É o Cristo da natureza que está encarnado do lado de cada um de nós, habitantes deste planeta. No Sítio Sertãozinho, em Moeda, ele está ao lado de Maria Madalena, que tem enxugado o rosto de todas as mulheres que vieram depois dela.

Cuidar é passar a mão nas feridas não cicatrizadas do outro. É transformar-se em bálsamo, em remédio, mesmo que sem receita. É ouvir a queixa, o lamento profundo de outro ser, mesmo que não haja fórmula para espantar tanto medo.

Cuidar-se já é mais complicado. Tem a ver com espelho e o jeito de captar os reflexos distorcidos da imagem. Tem a ver com unir os fragmentos e remendar os retalhos perdidos dentro da própria história, tem a ver com costurar, fio a fio, os emblemáticos sofrimentos passados.

Cuidar-se exige dedicação, disciplina, vontade de viver e de conquistar um corpo que não é o dela e que nunca vai ser. Cuidar de si mesma exige segurança de voo, bússola para não se perder quando o tempo estiver nublado. Exige leme para que a embarcação não fique à deriva e, mais do que tudo, exige disponibilidade e seleção de prioridades.

Cuidar do outro é pura suavidade, tem mais fluidez, gera contornos, efeitos, sem contraindicações. Cuidar tem a ver com um livro chamado Um certo verão na Sicília, de Marlena de Blasi, que conta a história de mulheres vestidas de preto, com tranças em torno da cabeça, que moravam na misteriosa Vila Donnafugata, onde cultivavam tomates, berinjelas, alcachofras, flores e o silêncio.

Cuidar tem a ver com sonhos em forma de biscoitos ou de pensamentos em noite de chuva, quando a natureza também era mais suave e não devastava tanto o território sagrado da Terra. Quando a chuva no telhado era sinal de bênção e não de catástrofe. Cuidar do outro é um jeito de cuidar de si mesmo, de ofertar o melhor de você. Cuidar é enxergar no outro pedaços inteiros de você mesma, é ver-se nos olhos do outro, abrir as janelas internas para deixar o vento entrar e soprar suavemente dentro da gente.


Fonte: Estado de Minas   http://www.uai.com.br/em.html

5 comentários:

  1. Lindo texto, Kyria. Saber cuidar faz parte do resguardar a si mesmo, revelando o bem comum. Ótima semana!

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  2. Cuidar é mesmo complicado.
    De um altruísmo fora de serie.
    Mas viemaos a esse mundo para nos completar. Ninguém é uma ilha, somos todos filhos da mesma luz.

    Beijo, moça

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  3. Lindo e verdadeiro, Kyria, parabéns pela escolha.
    ;)

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  4. eh... cuidar, cuidar e cuidar, sempre. adorei.
    um bj doce e apareça nas abobrinhas

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  5. Quem escreveu,quem leu e entendeu...!Tem muita sensibilidade.Parabéns a esses de bom gosto!!Jaguarão.RS.

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