segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

RUDOLF STEINER



No coração tece o sentir,
Na cabeça luze o pensar,
Nos membros vigora o querer.
Luzir que tece,
Tecer que vigora,
Vigorar que luze:
Eis o ser humano.

quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

O AFOGADO MAIS BONITO DO MUNDO - Gabriel Garcia Marques

 Aconteceu que, num dia como todos os outros, um menino viu uma forma estranha flutuando longe no mar. E ele gritou. Todos correram. Num lugar como aquele até uma forma estranha é motivo de festa. E ali ficaram na praia, olhando, esperando. Até que o mar, sem pressa, trouxe a coisa e a colocou na areia, para o desapontamento de todos: era um homem morto.
Todos os homens mortos são parecidos porque há apenas uma coisa a se fazer com eles: enterrar. E, naquela vila, o costume era que as mulheres preparassem os mortos para o sepultamento. Assim, carregaram o cadáver para uma casa, as mulheres dentro, os homens fora. E o silêncio era grande enquanto o limpavam das algas e liquens, mortalhas verdes do mar.
Mas, repentinamente, uma voz quebrou o silêncio. Uma mulher balbuciou: “Se ele tivesse vivido entre nós, ele teria de ter curvado a cabeça sempre ao entrar em nossas casas. Ele é muito alto…”.
Todas as mulheres, sérias e silenciosas, fizeram sim com a cabeça.
De novo o silêncio foi profundo, até que uma outra voz foi ouvida. Outra mulher… “Fico pensando em como teria sido a sua voz… Como o sussurro da brisa? Como o trovão das ondas? Será que ele conhecia aquela palavra secreta que, quando pronunciada, faz com que uma mulher apanhe uma flor e a coloque no cabelo?” E elas sorriram e olharam umas para as outras.
De novo o silêncio. E, de novo, a voz de outra mulher… “Essas mãos… Como são grandes! Que será que fizeram? Brincaram com crianças? Navegaram mares? Travaram batalhas? Construíram casas? Essas mãos: será que elas sabiam deslizar sobre o rosto de uma mulher, será que elas sabiam abraçar e acariciar o seu corpo?”
Aí todas elas riram que riram, suas faces vermelhas, e se surpreenderam ao perceber que o enterro estava se transformando numa ressurreição: um movimento nas suas carnes, sonhos esquecidos, que pensavam mortos, retornavam, cinzas virando fogo, desejos proibidos aparecendo na superfície de sua pele, os corpos vivos de novo e os rostos opacos brilhando com a luz da alegria.
Os maridos, de fora, observavam o que estava acontecendo e ficaram com ciúmes do afogado, ao perceberem que um morto tinha um poder que eles mesmos não tinham mais. E pensaram nos sonhos que nunca haviam tido, nos poemas que nunca haviam escrito, nos mares que nunca tinham navegado, nas mulheres que nunca haviam desejado.
A história termina dizendo que finalmente enterraram o morto. Mas a aldeia nunca mais foi a mesma.

domingo, 23 de janeiro de 2011

LIBERDADE, LIBERDADE!/ Déa Januzzi

Liberdade para quê? A pergunta vem martelando há dias na cabeça da mãe. Como se fosse um mantra ou um eco das próprias incertezas. De repente, ela ficou só: o filho decidiu seguir o próprio caminho e envia mensagens telepáticas por e-mail, como se quisesse economizar palavras. A mãe, que sempre viveu pelo e para o filho, também está livre para voar, mas, por enquanto, ainda não sabe o rumo. Escondeu as asas em algum lugar perdido dentro de casa. Reconhece que pode fazer o que e quando quiser, inclusive não fazer absolutamente nada.

Num primeiro momento, ela se sente livre de todas as amarras, em outros busca rastros do filho deixados pela casa e tem pena de si mesma, então escreve para se libertar do medo de estar só. E volta a se perguntar liberdade para quê? É uma pergunta difícil de responder quando ela está livre para fazer as comidas que gosta, beber vinho sem críticas, dormir na hora e do jeito que quiser, mas por que é que cozinhar para si mesma não é tão bom assim? Por que de repente a mãe pode fazer o que quiser e não quer fazer nada?

Liberdade, liberdade, o que fazer com essa profana, vasta, pecadora e sufocante liberdade? A mãe, então, se lembra de que reclamava o dia inteiro de não ter tempo para cuidar de si mesma, de não conseguir frequentar o salão, de não encontrar os amigos, de não poder convidá-los para sua casa. Agora ela pode e por que então não faz?

Há um silêncio na casa que só é cortado pelos latidos da cachorra Frida, companheira de todas as horas, mesmo as impróprias. Frida também sente saudades, mesmo que hoje possa ocupar todos os cômodos da casa, mesmo que possa latir até cansar, sem ser repreendida por um de seus donos. Frida busca abrigo aos pés da dona, suplica por carinho, não sabe por que de repente a casa ficou maior, grande demais para seus latidos.

No trabalho, ela continua orquestrando. É lá que a mãe procura a sinfonia, as ondas sonoras que a tiram do comodismo, da mesmice, da rotina. O trabalho é a companhia ideal que a faz sonhar, abraçar projetos, viver a alegria de ser ela mesma e de poder voar por meio das palavras. Enfim, o trabalho é a ponte para a liberdade de viver e de ser.

Depois do trabalho, ela pode virar à direita ou à esquerda, pode se perder no caminho ou achar um trajeto especial. Pode até dobrar a esquina mais próxima ou ir tão longe quanto quiser. Mas não faz nada, acostumou-se a voltar para casa, ouvir os ais do filho que lhe pergunta sempre: “O que vamos comer?” Em casa, tudo está arrumado, no lugar. Só falta lugar dentro dela. Dentro dela ficou tudo apertado. Por que, então, não arruma os livros na estante por temas ou autores? Um vento sopra em seus ouvidos: “Mãe, organize os seus arquivos. Eles são preciosos para você! Arrume alguém para ajudá-la a pôr a sua vida profissional em ordem!” – ela olha para o escritório em desordem e abre uma garrafa de vinho.

Olha para a taça e pensa, amanhã vou fazer isso ou daqui uns dias, quando estiver mais organizada por dentro. Ela pensa, por que será que as mãe só vivem para e pelos filhos? Por que é que quando uma mulher vira mãe, ela só se mobiliza com as causas do filho? Por que deixa os projetos desordenados no armário? Por que não compra flores para enfeitar a casa? Por que não acende um incenso e dança Odara? Ou tira para fora as suas melhores fantasias? Para quê, pensa a mãe que pode ir para trás e para frente, pode dar o seu salto quântico agora, pode até escrever os livros tão prometidos.

O computador da casa está livre só para ela, mas por que está tão difícil sentar na cadeira, ligar a máquina e começar? Por que não faz a própria agenda, põe em dia as visitas aos amigos, não faz os programas sempre adiados?

Ela está bem porque sabe que o filho também está. Não há desespero nem tristeza, apenas um fio enrolando seus passos, seus gestos, prendendo seus movimentos. Liberdade para quê? Já perguntou um amigo quando ela resolveu levar a mãe já idosa para morar com ela e o filho e pensava que poderia ficar presa. Foi o tempo que ela se sentiu mais livre, mais inteira e em paz consigo mesma. Cuidar é o verbo que as mães conjugam para sempre e com prazer. Ela pode muito bem cuidar dos pássaros, das plantas, da Frida, pode plantar mais ervas no jardim, nadar. Ela pode fazer tudo, mas não quer saber de plantas, dos pássaros, de ervas e flores.

Mas depois que uma mulher se transforma em mãe, ela até pode reclamar do dia a dia estressante, da rebeldia e inquietação dos filhos, de não conseguir agradar, de não saber conversar certas madrugadas, de estar cansada demais para filosofar, de pedir para abaixar a música, arrumar o quarto, estudar, mas o que pode uma mãe fazer com tanta liberdade? Ela ainda não sabe.