domingo, 3 de maio de 2009

POR UM MÍNIMO INSTANTE - Déa Januzzi


A vida inteira ela sonhou com o pai que nunca teve nem nunca viu. Mesmo já velhinha, aos 91 anos, seus olhos fugiam para um certo portão de uma casa quando, um dia, alguém gritou para ela: "Corre, venha logo, seu pai está passando montado num cavalo, corre, venha ver". Menina ainda, ela correu para o portão da casa e viu de longe um homem de chapéu, galopando rápido em seu cavalo. Não viu o rosto dele direito, mas pressentiu que era seu pai. Não conseguiu correr até ele, porque não se sentia preparada, achava que não estava bem vestida para vê-lo pela primeira e única vez em sua vida.
Ninguém sabe se foi por esse fato ou não que ela nunca mais ficou desarrumada. Tranformou-se numa bela moça, cortejada, desejada por muitos rapazes, mas só teve olhos para um, que foi seu marido por 42 anos. Ela ficou pronta por toda a vida, como se a qualquer momento o pai pudesse chegar em seu cavalo para galopar com ela para recuperar todo o tempo perdido.
Ela nunca conversou com o pai nem o viu de frente nem de costas ou por mais tempo do que aquele instante no portão de casa. A imagem dele era a do vento deixado pelo galope do cavalo. A moça virou adulta, depois amadureceu, envelheceu com aquela sensação de ausência, com os olhos tristes e fugidios de falta, de um buraco no peito, de um sapato apertado.
Os cinco filhos dela nunca entenderam por que a mãe ficava tão triste e decepcionada quando um deles anunciava que ia se separar. Ela desaprovava na hora, porque sabia o que era sentir saudade de alguém que passou por sua vida sem ao menos dar adeus, sem descer do cavalo. Nesses momentos, seus olhos galopavam lembranças de uma única cena.
Ela passou a vida inteira sentindo falta de pai, mas jamais reclamou. Tinha dificuldade de falar sobre o assunto sempre escondido entre as brumas e os segredos de família. Afinal, o que poderia fazer uma mulher do início do século 20, com um pai desconhecido na certidão de nascimento, uma espécie de mancha que num sai nunca?
Ela escondia o segredo. Nunca falava do pai. Mesmo revelando tudo sobre a mãe, mesmo depois de casada com o amor de sua vida, mesmo depois da morte do marido, ela não sentia à vontade para falar de um assunto tão grave, tão profundo para ela, tão mal resolvido. Um assunto que ninguém lhe deu a chance de interferir, de mudar o rumo, de galopar por outros caminhos.
Só conseguia se abrir em certos momentos, quando pressentia, por exemplo , que precisava urgentemente conversar com o pai de um de seus netos. Filha de mãe sozinha, ela sabia que era preciso conversar com o pai do neto, mas ele também não tinha tempo. Vivia galopando em suas fantasias. Ela queria dizer ao pai do neto que ele precisava estar perto quando ela fosse embora, que deveria cuidar, se aproximar, antes que a ausência se cristalizasse definitivamente num coração vazio.
No íntimo, ela sabia que uma de suas filhas estava repetindo a história da avó, mas não desejava que o neto sofresse essa dor ancestral, que ele tivesse que pagar pelos pecados de seus antepassados. Ela sempre pedia a presença do pai do neto para conversar, explicar que ele não deveria ser tão ausente, não deixar essa falta tão escancarada nos olhos do neto. E via a história se repetir. Ela, que era a própria imagem da falta de pai, sabia que essse vazio não podia ser preenchido.
Ela só falou o nome do pai uma vez, para não repetir nunca mais. Calou-se sobre sua origem, e os filhos nunca entenderam direito sobre parentes próximos e distantes afinal, aquela mulher havia abdicado de muito na vida, inclusive de ter pai.
De uma época em que não se falava em separação conjugal, em mulheres trabalhando fora de casa, em que filhos legítimos só eram possíveis dentro do casamento, ela nunca reinvidicou mais do que um abraço daquele pai que passou em frente à sua casa montado num cavalo. Ela nunca pediu nada, mas essa espécie de coceira numa perna amputada jamais passou. Às vezes, era como uma pluma a fazer cócegas, mas outras vezes a coceira era tanta que virava uma ferida aberta.
Ela nunca perdeu a pose. Parecia estar sempre pronta para ver o pai chegar como um príncipe encantado, em seu cavalo branco, para levá-la de vez. A vida inteira se vestiu como uma princesa. Depois se transformou numa rainha de olhos tristes e fugidios, mas sempre majestade.
Um dia, ela também se foi para sempre, mas levou consigo a imagem daquele cavaleiro no portão de sua casa. Ele nem sequer se dignou em acenar para ela com seu chapéu, mas ela jamais se esqueceu. O pai continuou a galopar em suas lembranças até o fim de seus dias. Como um vento, um sopro que acaricia o rosto nas tardes normais da saudade!


Fonte: jornal Estado de Minas 03/05/2009
dea.januzzi@uai.com.br

22 comentários:

  1. Obrigada pela visita!!!
    Vim retribuir...
    Post interessante!!
    Volte mais vezes, tá?

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  2. Nossa, que texto! Adorei o post e a visitinha lá no bloguito!
    Obrigada!
    Super beijo,
    Isa

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  3. Que o mínimo seja o suficiente pra nós tb. Pra essa Sra. foi o combustão da saudades e da lembrança de um afago não vivido e de palavras não ditas.

    Valeu a visita e ecobeijos.

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  4. Kyria,eu e Déa fomos colegas de escola, na adolescência. Amigas que a vida separou, mesmo vivendo na mesma cidade, seguimos nossos rumos. Vez ou outra eu a vejo pelo centro da cidade, talvez indo para o trabalho no jornal.Eventualmente vejo uma ou outra de suas irmãs, mas perdemos o contato mesmo. Recentemente perdeu a Mãe ( o que só soube uns dias depois) e lhe mandei e-mail, ao qual me respondeu feliz e ficamos de marcar um encontro. Sabe aquele orgulho que dá quando a gente conhece alguém que faz sucesso na profissão? Pois é, tenho orgulho dela!

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  5. Que texto lindo!!! Fiquei toda arrepiada de emoção. Chega e ser triste amiga porque mexe com nossos sentimentos mais profundos.
    Bj EDNA

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  6. Um belo texto, muito lindo. Ótima semana para você. Assisti também Não se mova com a Penélope Cruz, bem forte, este que você indicou está anotadísimo.

    bom início de semana. beijo carinhoso.

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  7. Vc é um amor, sempre nos presenteando com seus lindos textos!
    bjk

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  8. Fofa, ótima semana pra vc!
    Bjokas
    Lets

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  9. Kyria, triste esse texto, me fez refletir, muito. E acabei ficando meio triste tb . Acho que já te contei que sou separada do pai das minhas filhas e que ele não se lembra das filhas , nem nos seus aniversarios ? Sua historia me fez lembrar que mais um ano se passa na vida delas e ele não se faz presente em nenhuma data especial.
    Que pena !
    Mas enfim, fiquei feliz que teu filho te ajudou com o contador , não é dificil ,mas as vezes dá trabalho quando não dominamos o assunto. é muito gracioso o que escolheram , nunca tinha visto, e combinaria com meu blog, uma vassourinha pra bruxinha , hehehhehe
    Vim tb te agradecer o carinho dos comentarios em tuas visitas , és muito especial, e sempre que precisar fale. bjs Leila

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  10. Lindo, Kyria!!! Inspiração à flor da pele!!! Amei!!
    Bjks, Beta

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  11. Oie! Adoro textos que nos fazem refletir... mesmo sendo tristes como este. Estou uma manteiga derretida ultimamente, liga não. Bjokas querida.

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  12. kkkkkkkkkkkkkkkkkkkk
    Comecei a deixar este assunto passar batido, notou, né???
    E vc nem imagina pq...
    kkkkkkkkkkkk
    Mas estou preparando um post sobre este assunto...
    Juro que vais morrer de rir!!!
    kkkkkkkkkkk
    (só de pensar, já rio sozinha)...
    Prometo adiantar este post...
    ps: vc não foi a única a sentir falta deste assunto!!!
    kkkkkkkkk

    Bjokas
    da Jô

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  13. pra variar, mais um texto lindo, né?

    bj

    ps: terei o maior prazer em te receber, viu?

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  14. Oi Walquíria eu vim sim...rsssss
    Tudo bem com vc? Gostei bastante do seu blog e ja descobri novos caminhos através dele...
    o meu blog é o sylkellydecor.blogspot.com,tenho a quase 1 ano,é uma aula de designer de interiores q pretendo dar durante todo o blog e comecei com a história do mobiliário, tem coisas interessantíssimas...Fiz esses dias um blog de fotos,que é meu hobby,uma paixão, onde publicarei minhas fotos amadoras,ainda nao publiquei nada meu, fiz meu 1° post com fotos de um site que amei de paixão!Gostaria que vc fosse visitar meu blog ainda inacabado e deixasse um recadinho por lá! Muitos beijos syl
    www.falodefotos.blogspot.com e se quiser me dar o prazer de conhecer os dois melhor ainda rssssss!!!!bjs syl

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  15. Adoro suas visitinha!
    Apareça mais vezes!
    Super beijo!

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  16. Oi!

    Dei uma olhada no seu blog e adorei os textos... Todos de ótimo gosto!
    Vi também uma imagem de Nossa Senhora do Silêncio e fiquei apaixonada... Também moro em BH e, se não for muito incômodo, gostaria que me informasse onde comprou a imagem.
    Muitíssimo obrigada e tenha uma ótima semana!!!

    Keise Brandão.

    Ah! Meu e-mail é keise_brandao@yahoo.com.br
    Ainda não sou "blogueira"... ;)

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  17. Ai! Que lindo texto... Por isso amo te visitar, aqui é como casa de vó, tem sempre cheirinho de bolo e coisas boas para se deliciar.
    Obrigada de coração pela mensagem de aniversario. Esta sendo um prazer te-la como amiga virtual!

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  18. Esse seu jeito de escrever faz-me ficar colada até ao último ponto final!
    Bonita triste história de vida!

    beijinhos e... força consigo!
    quando estamos quase a ficar sem fôlego, surge SEMPRE uma lufadinha que nos dá ânimo para continuar, não é assim Kyria?

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  19. A maresia adormeceu na areia
    O mar transformou-se em espelho de água
    Uma nuvem mirou-se nele
    Verteu uma última gota de mágoa

    Este sol que beija a ilha na manhã
    Trás um sorriso cheio de mistério
    Este verde orvalhado pela bruma da noite
    É o tapete de um Deus no seu império


    Convido-te a veres o teu mais profundo no “Espelho Mágico”


    Doce beijo

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  20. Obrigada Sandra, também acho belíssimo. Bjs

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Obrigada por deixar o seu jeito.