Você
que trabalhou, batalhou, criou os filhos, envelheceu... Os filhos
cresceram, saíram de casa, você se aposentou... E agora o tempo se
estende vazio à sua frente, pouco importa levantar-se cedo ou tarde, não
faz diferença, os dias ficaram todos iguais, não há batalhas a travar,
ninguém precisa de você...
Cada dia é um peso, é preciso matar
o tempo, descobrir um jeito de não pensar, pois o pensamento dói, e vem
uma vontade de beber, uma vontade de esquecer, uma vontade de morrer...
Chegou o momento da inutilidade, e é isso que você não suporta, pois lhe ensinaram (e você acreditou) que os homens e as mulheres são como as ferramentas, que só valem enquanto forem úteis. Ensinaram-lhe
que você é uma ferramenta que merece viver enquanto puder fazer. E
agora que o seu fazer não faz mais diferença, você se coloca ao lado dos
objetos sem uso. À espera de que a morte venha colocá-lo no devido
lugar, pois nada mais há que esperar. Você está sem esperança.
Mas lhe ensinaram mal, muito mal. Pois nós não somos ferramentas. Não vivemos para ser úteis.
Dizem
os textos sagrados que Deus trabalhou seis dias para plantar um jardim.
Terminado o trabalho, já não havia nada mais para ser feito. E foi
justamente então que Deus sentiu a maior alegria. Terminado o tempo do
trabalho, chegara o tempo do desfrute. E o Criador se transformou em
amante: entregou-se ao gozo de tudo o que fizera. Com as mãos pendidas
(pois tudo o que devia ser feito já havia sido feito), seus olhos se
abriram mais. Olhou para tudo e viu que era lindo. Pôs-se a passear pelo
jardim, gozando as delícias do vento fresco da tarde. E, embora os
poemas nada digam a respeito, imagino que o Criador tenha também se
deleitado com o gosto bom dos frutos e com o perfume das flores - pois
que razões teria ele para criar coisas tão boas se não sentisse nelas
prazer?
Se há uma lição a ser aprendida desses textos, lição
que é que não somos como serrotes, enxadas, alicates, fósforos e
lâmpadas que, uma vez sem o que fazer, são jogados fora. A nossa vida
começa justamente com o advento da inutilidade. Pois o momento da
inutilidade marca o início da vida de gozo. Nada mais preciso fazer.
Travei as batalhas que tinha de travar. Nada devo a ninguém. Estou livre
agora para me entregar ao deleite.
Todas as escolas só nos ensinam
a ser ferramentas. Será preciso que você procure mestres que ainda não
foram enfeitiçados por elas. Você deve procurar as crianças. Somente
elas têm o poder para quebrar o feitiço que o está matando ainda em
vida.
As almas dos velhos e das crianças brincam no mesmo
tempo. As crianças ainda sabem aquilo que os velhos esqueceram e têm de
aprender de novo: que a vida é brinquedo que para nada serve, a não ser
para a alegria!
Desde os seis anos tenho mania de
desenhar a forma das coisas. Aos cinquenta anos publiquei uma infinidade
de desenhos. Mas tudo o que produzi antes dos setenta não é digno de
ser levado em conta. Aos 73 anos aprendi um pouco sobre a verdadeira
estrutura da natureza dos animais, plantas, pássaros, peixes e insetos.
Com certeza, quando tiver oitenta anos, terei realizado mais progressos,
aos noventa penetrarei no mistério das coisas, aos cem, por certo,
terei atingido uma fase maravilhosa e, quando tiver 110 anos, qualquer
coisa que fizer, seja um ponto, seja uma linha, terá vida.
Vamos! A vida é bela. Pare de namorar a morte! Beba a taça até o fim!"
É mesmo um Mestre, esse sábio Rubem Alves!
ResponderExcluirEstou sorvendo, a minha taça, tranquilamente!
Boa semana, Kyria.
Uma abraço,
da Lúcia
Que lindo! Rubem Alves é maravilhoso!
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