domingo, 24 de abril de 2011

JUNTO NA VIA - CRÚCIS - Déa Januzzi

Ela fez a via-crúcis durante toda a semana santa. Jejuou de toda a violência vista e não vista. Perdoou-se por não saber o que fazer diante de tantos poréns que impedem cada um de viver momentos mais felizes.

Pensou em se ajoelhar diante do altar da sua janela, lá em cima do Bairro da Serra, que revela uma cidade crucificada entre prédios, carros e mais edifícios em construção, que ferem o corpo urbano. Do alto ela viu a via-crúcis das mulheres da comunidade ao lado, que têm que enfrentar seus dias subindo e descendo o morro carregadas de compras e de crianças.

Jejuou pelas suas inúmeras perdas, pelas ilusões que alimentou durante tanto tempo. Fez jejum por todas as mães que até hoje sentem as dores do parto, mesmo depois do nascimento dos filhos. Pelas mães que ainda sentem as contrações de um novo mundo, mas ainda não conhecem o rosto da criança que virá para redimir os homens.

Ela jejuou pelos justos e injustos. Pelos humilhados e ofendidos, pela fome de viver dos velhos, pela ânsia de conquistar dos jovens. Ela fez novena, o nome do padre, o sinal da cruz, acompanhou a procissão dos incrédulos, acreditou no amanhã que já se avista do alto dos nossos sonhos. Renunciou a tudo que não lhe faz bem mais. Jejuou a favor dos insanos que ainda constroem usinas nucleares no lugar de plantar girassóis nos beirais das janelas.

Mesmo se alimentando todos os dias, mesmo comendo carne um dia ou outro, ela continua com fome de boas notícias, com sede de mudanças. Lê Cecília Meirelles enquanto espera a Páscoa: “Tu tens um medo. Acabar. Não vês que acabas todo dia. Que morres no amor. Na tristeza. Na dúvida. No desejo. Que te renovas todo dia. No amor. Na tristeza. Na dúvida. No desejo. Que és sempre outro. Que és sempre o mesmo. Que morrerás por idades imensas. Até não teres medo de morrer. E então serás eterno...”, ela vai recitando, e a cadela Frida a segue como uma sombra por toda a casa, até que amanhece o dia – e ela tem vontade de celebrar o domingo da ressurreição.

Tem vontade de ressurgir na alegria, no almoço de família que já não une mais pais e irmãos, nos ovos de Páscoa que as crianças abrem antes de domingo, pois o ritual dos avós se esvaiu na fumaça da eternidade. Ressurgir depois de todos os tropeços dessa via-crúcis eterna. Dos tombos pelo caminho, desse suor que escorre sem que nenhum pedaço de pano enxugue o rosto dos crucificados.

Se ela está entristecida? Não, porque cosmicamente as energias espirituais estão favorecidas neste domingo de Páscoa, oferecendo a dádiva de renascer, de ressurgir entre os mortos, de vivificar, de dividir as sombras com a luz, de compartilhar o pão e o vinho. De erguer a hóstia sagrada da renovação e deixar o ontem definitivamente para trás..

Não, ela não está triste. Ela deseja que cada um encontre seus ovos de Páscoa no meio do jardim que acabou de florescer. Ela deseja momentos tão perfeitos como os do pôr do sol que nunca se repetem. Deseja um banho de cachoeira para descarregar o peso da via-crúcis. Deseja que a mesa do almoço esteja farta em todas as casas, com um cardápio caprichado, mesmo que só haja o mesmo arroz com feijão de todo dia.

Deseja que mesmo assim haja flores no jardim, para colher e enfeitar a escuridão da miséria. Deseja que as crianças encantem com os olhos todos os seres deste planeta e que possam inventar uma nova forma de viver. Deseja que as feridas tenham cicatrizado neste dia depois do bálsamo da ressurreição, que haja promessas de uma vida nova, mais simples e verdadeira, com uma rede na varanda e o horizonte mais perto de cada um. Deseja que haja uma fogueira sempre acesa em cada esquina do coração. E uma imensa Lua para enfeitiçar o caminho. Estrelas em profusão para quando a noite descer como um manto.

Ela deseja que a família sobreviva às mágoas, às raivas, à competição, à mesmice e ressurja em novas configurações do afeto: que pais não fujam dos filhos, que mães deixem os filhos voar, irmãos abracem irmãos, sobrinhos se curem das feridas ancestrais, avós encontrem um lugar no coração dos netos. Nesta Páscoa, desejo que todos sejam convidados para a ceia do encontro. Que pelo menos neste dia todos possam compartilhar a boa-nova. Ela deseja a união, mesmo que o pai esteja na África, o filho em Machupicchu e que ela não saia do mesmo lugar. Ela deseja, neste domingo, que todos se encontrem em algum lugar secreto da alma.

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