domingo, 3 de abril de 2011

EXERCITE O DESAPEGO - Déa Januzzi


A mãe sempre se considerou livre, sem apego a bens materiais. Doava tudo, desde lápis, caneta, isqueiro, brincos, pulseiras, bolsas, roupas, sapatos, até móveis e eletrodomésticos a cada vez que mudava de casa e de endereço. Olha que nada caiu do céu para ela. Teve que batalhar e trabalhar para comprar todas os seus pertences. Se tivesse ficado com tudo o que foi acumulando ao longo do tempo, hoje teria que morar num apartamento de 350 metros quadrados, para caber um monte de antiguidades e quinquilharias. A mãe aprendeu com a física que um espaço de 50 metros quadrados é suficiente para caber suas tralhas e sonhos, mas que se ela mudar-se para um de 120 metros quadrados, com o tempo vai ocupá-lo totalmente. A gente vai crescendo e acumulando objetos de acordo com o espaço disponível.

Muito antes da prática tão pregada no mundo de hoje de doar para desvencilhar-se do passado e de energias negativas que ficam impregnadas nas paredes da casa, ela já fazia a própria faxina. Nunca gostou de juntar, seja roupas, bijuterias, imóveis ou joias. Não gosta de colecionar nada. Nem tampinhas, nem corujas, sapos, taças, porcelanas, figurinhas. Mas tem em casa o canto das rolhas de vinho que pretende um dia reciclá-las, para que ocupem lugar de destaque, pois, afinal, ela gosta de tomar vinho e as rolhas de cortiça estão prestes a desaparecer para dar lugar às sintéticas. Para ela, vinho com rolha sintética não tem nenhuma nobreza. Tomar vinho tem lá seu ritual e reciclar rolhas nunca foi tão moderno.

Muito antes da moda de limpar gavetas para ter uma casa saudável, a mãe já gostava de jogar fora tudo o que não usava mais. Detesta panelas com alças quebradas, com tampas gastas, torneiras pingando. Mesmo morando de aluguel, gosta dos apartamentos bem limpos, com a sua cara. Atualmente, sofre com as goteiras que pingam sem parar no imóvel em que mora. Não tem energia mais negativa do que mofo nos cantos das paredes por causa das goteiras. Faça sol ou chuva, a desejada cobertura da Rua Salutares apresenta defeitos que impedem a moradora de ser feliz lá dentro.

Antes da tão abençoada casa com as cores do feng shui, ela já amava detalhes coloridos nos lugares certos, sinos dos anjos mensageiros, cristais, incensos, mas tudo à sua moda, sem imposição de ninguém nem de nada.

A mãe se considerava uma pessoa desapegada, até que o filho voltou de uma longa viagem. A mochila de 50 quilos ainda estava cheia, mas com pedras vulcânicas e abençoadas pela cultura dos índios chilenos mapuches. Ao abrir a mochila, a surpresa: “Olha, mãe, eu te disse que estava levando roupa demais, então, dei camisas, calças, tênis, tudo o que estava pesando demais”.

Assustada, a mãe pensou nas camisas e tênis comprados com tanto carinho. “Cadê a máquina fotográfica?” – pergunta a mãe. Ele responde que deu para alguém que estava precisando mais do que ele, que tinha tirado todas as fotos e que a máquina era velha. Cadê a camisa transada que o Carlos Ferrer, da Nobres Pecadores, deu de presente? O filho responde que a camisa fez tanto sucesso por lá que ele não podia deixar de oferecer para a pessoa. Cadê o sapato tal? Ah, mãe, só tenho dois pés para que tantos pares de sapato? Exercite o desapego, mãe!

Perplexa, a mãe silenciou porque o exemplo vinha dela mesma. Quantas vezes já não retirou o anel do dedo, porque alguém elogiara? Quantas vezes distribuiu objetos praticamente novos porque tinha que mudar de casa? Por que iria cobrar do filho por ter a mesma postura?

Depois de um tempo, ela mesma teve a resposta. De tanto desprezar o dinheiro e as coisas materiais ficou praticamente de mãos vazias. Teve que aprender sofrendo que, muitas vezes, o dinheiro que vem do trabalho é abençoado e não pode ser jogado fora ou rejeitado, que tem de saber dar para pessoa certa na hora certa e que não pode ficar doando coisas sem a pessoa pedir.

Com o tempo, a mãe aprendeu que há uma troca solidária e universal, que nada vem de graça e que o universo conspira a favor em certos momentos, mas em outros pode mudar de direção. Com o tempo, a mãe aprendeu que nada é tão fácil que se pode jogar fora. E que nem por isso as pessoas são egoístas e insanas.

A mãe aprendeu que é preciso agradecer pelas bênçãos de cada dia e reservar o melhor da gente para viver bem o dia de hoje. A mãe aprendeu que nem tudo cai do céu. E se cair é preciso saber colher com temperança. Mas ela sabe que o filho também terá tempo de aprender. A mãe, então, ri de si mesma e do filho que ainda é jovem para esbanjar vitalidade, energia e depois juntar tudo de novo, porque a vida é mesmo um mistério a ser desvendado. A mãe ri sozinha, porque o maior exercício que está praticando hoje, diariamente e com capricho, é se desapegar do filho, para que ele possa ter vida própria.

Um comentário:

Obrigada por deixar o seu jeito.