domingo, 21 de junho de 2009

NO FUNDO DO MAR - Déa Januzzi

"Há um clima siberiano, um atormentar de correntes, de almas que perambulam em busca da redenção. Há um vazio do tamanho do oceano dentro dela"

Há um inverno dentro dela que não termina nem com a chegada de outra estação. Um inverno que congela os ossos e a alma, que entra pelas frestas da porta e vai dormir na mesma cama que ela. Um inverno de pés frios que nem outro pé consegue esquentar. Nem todas as bolsas de água quente nem o escalda-pés com sal grosso no fim de cada noite.

Nem mesmo o alvorecer, com rasgos de vermelhos e alaranjados no céu, prova que é um novo dia no coração dela, que está precisando urgentemente da cola do amor pregada pelo mestre Osho. O inverno chegou bem depois que o frio penetrou nas suas entranhas.

Ela ouve o silêncio do fundo do oceano que sugou príncipes, executivos, estudantes, turistas ocasionais, casais de namorados que juntaram todas as suas economias em busca do sonho de conhecer Paris. É um silêncio de doer o ouvido, de dar pane na engrenagem da vida. É um silêncio do fundo do mar, onde as buscas não alcançam, onde não há a menor chance de vida, onde não há peixes ornamentais nem cardumes, nem algas, nem plantas aquáticas. Nem águas-vivas. É um fundo de mar mudo, morto, quieto, abissal. Não se escuta nem mesmo a linguagem dos habitantes do mar, que fugiram depois do acidente com o voo 447 da Air France. É inverno no Oceano Atlântico.

Um dia, quem sabe, os aviões poderão voar seguros em céu de brigadeiro e os sonhos não vão terminar em pesadelos. Um dia, quem sabe, o verão estará sempre dentro da gente, para retirar o mofo que se acumulou no longo inverno de nossas vidas.

Há um vento inquietante batendo à sua porta para avisar sobre a frágil condição de viver, para anunciar as geleiras que se formam no caminho. Há um clima siberiano, um atormentar de correntes, de almas que perambulam em busca da redenção. Há um vazio do tamanho do oceano dentro dela.

É chegada a hora de deixar o mar e voar para as terras seguras do amanhã. É hora de sentar à mesa e servir chá quente, para aquecer o coração das mães que perderam os filhos no voo 447 da Air France, porque elas não terão nem mesmo o direito de enterrá-los. Não haverá o ritual do término da vida. Ah, mães dos filhos do voo 447, que não vão querer mais olhar para o céu, sem sentir o silêncio do fundo do mar.

O inverno é longo demais, sujeito a chuvas e trovoadas, a relâmpagos que brincam com as invenções humanas, que desintegram corações já quebrados pelo simples ato de viver e estar sujeito às intempéries, à inquietação da natureza.

Há um inverno querendo sobrepor-se às outras estações. Há um inverno que insiste em não deixar a primavera chegar, que pisoteia nas flores e promove o pântano enganoso dos nossos dias.

Não dá nem mesmo para desligar o refrigerador dos sentimentos. Muito menos pedir emprestado o chauffeur d’air (aquecedor de ar) dos franceses para aquecer o quarto escuro da dor que se espalhou pelo ar e foi morar no fundo do oceano. Nem a Marselhesa cantada no altar de Notre Dame será capaz de quebrar esse silêncio crepitante.

Há um inverno dentro dela querendo virar primavera, mas ela ainda sente o frio da alma tomar conta de tudo, mesmo que haja um prenúncio de sementes e flores no ar. Até mesmo as estações do ano estão loucas, se reviram dos pés à cabeça diante de tantos percalços. Há um eterno inverno no fundo da gente.

2 comentários:

  1. emocionante, mas triste demais...
    e deve ser exatamente assim que elas, as mães, estão se sentindo, né?

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  2. sensível!
    que situação desesperadora!
    bjk

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Obrigada por deixar o seu jeito.