sábado, 14 de fevereiro de 2009

O FRADE E A CORTESÃ


Matteo Bandello

Vou lhes contar um fato alegre que sucedeu não faz muito tempo em Milão. Notem, porém, que em Milão, minha pátria, há inúmeros conventos de frades e monges de diversas ordens, e bem assim mosteiros de virgens consagradas a Maria. Temo-los de todas as classes, de homens e mulheres mendicantes, e de outros que vivem santamente, na prática das sagradas prescrições, mas, temo-los, também, licenciosos, dissolutos e desonestos, de indivíduos que levam a vida escandalosa, e em cuja mão se ajusta melhor a espada que o breviário.

Dentre eles, vivendo em certo convento, cujo nome não revelarei, havia um irmão endemoniado, o qual era tão dado a mulheres que, não satisfeito em percorrer as casas das cortesãs, para gozar dos prazeres amorosos, ainda as fazia vir à noite à sua cela, para tê-las junto de si até de manhã.

Sucedeu certa vez, que tendo feito vir uma delas, esteve ao seu lado toda a noite pegando apostas, e de tal modo, que o tempo transcorreu sem que dessem por isso. Quando, pela manhã, ouviu a sineta tocar a chamada, o irmão se ergueu, e disse à mulher:

- Durma, vida minha, enquanto eu vou ao coro. Logo que acabe a missa, voltarei.

Acendeu uma luz, abriu o seu armário, que continha numerosas garrafas e frascos, e tomou um destes. Era no mês de junho, e fazia um calor terrível. Fatigado da noite mal dormida, o irmão sentia-se sufocar. Pôs-se por isso, a lavar as mãos e o rosto com água de um dos frascos, fechando-o em seguida no anuário. Feito isso, apagou a luz e saiu da cela, fechando a porta com a chave.

A mulher acompanhou com os olhos o que fazia o religioso, percebendo o cheiro da água perfumada de rosas de que ele se servia; e, sentindo desejo de refrescar-se também, levantou-se no escuro, tomou um dos frascos, imaginando que fosse o de água de rosas, quando na realidade era de tinta, e começou a molhar todo o rosto, o pescoço, o colo, os braços, de modo que, supondo refrescar a carne, pintou-se tão bem de negro que parecia um demônio do inferno. Friccionadas todas as partes do corpo, guardou a garrafa no armário e, voltando a deitar-se, não tardou a dormir profundamente.

Terminada a missa, o frade deixou o coro, e com uma candeia na mão, regressou à sua cela. Apenas abriu a porta, viu a mulher que dormia no seu leito; mas, vendo-a tão diferente do que sempre era, imaginou que o diabo do inferno se havia colocado no seu lugar, durante a noite.

Essa estranha ideia causou-lhe tal terror, que deitou a correr tão ligeiro como lhe permitiam as pernas, até a igreja, onde os frades se achavam todos reunidos. Chegou ali, trêmulo, e atirou-se aos pés do superior do convento; o seu medo era, porém, tão grande, que não sabia nem podia articular urna só palavra. Aflito, banhado de suores frios, esforçava-se, debalde, para encontrar fôlego, e dizer algo. Os outros frades, surpreendidos, agrupavam-se-lhe em torno, ao mesmo tempo que o prior procurava animá-lo, perguntando-lhe o que tinha. Recobrando um pouco o alento, o irmão confessou, enfim, o seu pecado, e, chorando, referiu como havia introduzido a cortesã em sua cela e como esta se transformara em demônio do inferno.

O superior pôs a estola, fez tomar a cruz e a água benta, e, em procissão, encaminhou-se para a cela em que se achava a mulher. O aparato das tochas acesas, o barulho dos salmos e das orações de esconjuros, despertaram a cortesã, que, de pronto, pôs-se de pé em cima do leito.

Ao ver o monstro desgrenhado, - pois que a mulher trazia o penteado desfeito, - os frades tiveram como certo, que era o espírito diabólico. E tomaram-se de tal temor, que se puseram a fugir desabaladarnente, o prior primeiro, seguido dos que levavam a cruz e a água benta. Alarmada com tudo aquilo, a mulher pulou da cama e, vendo-se com a camisa manchada de negro, assustou-se por sua vez, deitando a correr atrás deles.

Uns caíram por terra; outros atiraram para o lado as tochas e a água benta. A cortesã, não podendo compreender o que tudo aquilo significava, corria atrás deles, em camisa como estava; e como tinha tido com quase todos, os seus lances amorosos, chamava a cada um por seu nome. Tropeçando nas tochas que os monges iam abandonando na fuga, rolou por terra, e ao se erguer viu que estava desfigurada. Então compreendeu que, em vez de se lavar com água, havia se friccionado com tinta. Por fim, tanto gritou, e com tal força, que reconheceram a sua voz, explicando-lhes ela o modo como se tornara daquela maneira. Alguns irmãos aproximaram-se a lavá-la, com sabão e água fresca, até que a puseram branca, como era da sua natureza.

Eu os deixo a imaginar se essa ventura lhes foi favorável ou adversa, e se a cortesã podia queixar-se do sucedido, pois, depois de a terem lavado, mais de uma dezena de monges a quiseram levar para a sua cela, para receberem os seus agradecimentos.



fonte: Newsletter Jayme Copstein

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