segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

CONTO: MULHER PEQUENA - Orlando Eller


Negro, magro e alto, barba rala por fazer e molhado do orvalho que caíra naquela noite, ele apareceu de sopetão às seis da matina no terreiro lá de casa, roça do Alto do Jacutinga. Saído de um capoeirão cerrado, vestia camisa puída xadrez, calça rasgada que expunha um de seus joelhos e botina surrada. Passou pela porteira, esgueirou-se à esquerda pelos lados da horta, dirigiu-se ao meu pai e, sem dizer bom dia, pediu:
Patrão pode me dar um café?
Papai apoiou antebraço direito sobre o cabo do machado com que lascava lenha e, assustado com a inusitada aparição ordenou:
Senta ali no pilão, a patroa já está passando o café.
Assentou-se de pernas abertas, bem ao lado do forno em que mamãe assava o pão de milho. Encurvo-se para frente e apoiou os antebraços sobre as coxas. Na mão direita trazia vara de guaxuma e, com olhos fixos no chão desenhava com ela rabiscos na fina poeira. Tentei inutilmente lê-los, enquanto papai, agastado, rachava lenha mas sem perder de vista aquela estranha figura.
Jacutinga era lugar de gente branca, maioria pomerana. Não era comum ver ali um estranho preto ofegante saído da mata fechada à exceção do Loriano, empregado do vovô. Reluzente em bela negritude, não só entendia e falava várias coisas em pomerano, como habitualmente rezava com vovó à mesa em alemão puro para agradecer ao senhor pela farta mesa:
Gott diar sei Dank
für spaise um Drank,
durch Jesum Christum, amen...
Mamãe acabara de passar o café, feito de pó caseiro em coador de pano de arábica colhido, socado,torrado, moído,ali mesmo em casa. O cheiro inconfundível passeou pela casa, varreu o terreiro e incendiou o nosso desejo de sorvê-lo para inaugurar mais um entre tantos dias que eram de muita simplicidade e paz.
O negrão estava impaciente. Vigiava cada canto e continuava a riscar o que eu não conseguia decifrar. De onde teria ele procedido? De Gimirim mineiro Itueta, divisa entre terras mineiras e capixabas do Baixo Guandu? De Mantena contestada fugido talvez da morte prematura ou da captura errante?
Mamãe lhe trouxe o café servido em caneca esmaltada verde, em que já se viam pontos machucados pela ferrugem. Entregou-a ao negrão até então sem nome. Ele correu os olhos em mamãe de alto a baixo. Avaliou tamanho, conferiu voz, analisou roupa, percebeu mãos e pés descalços e o inteiro jeito de gente simples da roça.
E bebeu gole a gole devagarzinho como lhe convinha, fracionando no ar pela respiração ofegante, a branca e tênue nuvem do vapor saboroso que emanava da caneca. Tudo à luz do sol, que despontava, a ainda coberta de floresta densa, minha morada então simples e livre.
Depois, ao devolver a caneca, fitou nos olhos azuis do meu pai e recitou:
Pipoca é mi piqueno
qui si quebra no fugão
muié piquena é veneno
i a grandi sombração.
E se foi sem mais nada dizer, tomando o rumo do patrimônio mais próximo de Mutum Preto. Papai, com certeza aliviado, chamou mamãe para dizer:
Dôra, ele falou que você é assombração...


fonte: Newsletter Jayme Copstein




Eu justifico pessoal:tenho 1.465cm de altura, tá explicado o porque da minha atração pelo conto?

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Obrigada por deixar o seu jeito.