domingo, 29 de novembro de 2009

VELHICE DESPROTEGIDA - Déa Januzzi


Você acha que vender, convencer a comprar ou pedir contribuições mensais indiferentemente da causa pode ser uma violência contra o idoso? Pois inúmeras pessoas com mais de 75 anos estão em perigo, nas mãos de alguns operadores que vendem tudo por telefone. Uma amiga me liga desesperada dizendo que a mãe, de 81 anos, que mora sozinha, ainda é muito lúcida, está bem, faz de tudo, mas que às vezes ela falha por causa da idade. Nesses momentos, ela passa o número do seu CPF e do cartão de crédito para qualquer um que a convença a comprar um produto. Minha amiga repete com a voz sumida uma frase de Simone de Beauvoir. “Nada deveria ser mais esperado e, no entanto, mais imprevisto do que a velhice.”

Muitos idosos que vivem com certo conforto em suas casas também são muito vulneráveis ao sofrimento de outras pessoas na mesma etapa de vida. Uma voz mais terna ao telefone, dizendo que idosos de um certo asilo estão passando fome, pode ser a senha para um bombordeio de contribuições mensais que não param mais.

Algumas instituições chegam a abocanhar uma boa fatia do salário dos mais velhos. Mesmo que os filhos, parentes ou cuidadores percebam a tempo que o idoso em questão foi passado para trás, não é possível desfazer o que está feito. “Eles alegam que minha mãe concordou e deu o CPF e o número do cartão de crédito”, protesta a minha amiga.

Desfazer esse nó é mais difícil do que se pensa. Ela apelou para advogados, entidades de proteção ao consumidor, das donas de casa, que não puderam fazer nada e a mãe, que nem sabe o que foi que comprou e porque, teve que engolir o produto goela abaixo.

Ao ser indagada se acha que esse tipo de venda é uma violência contra o idoso, Judy Robbe, que tem grupos de apoio à família de pacientes com Alzheimer, diz que sim. “São muitos os casos que chegam ao meu conhecimento. Muitos idosos estão bem no início da demência senil e ainda têm os próprios cartões de crédito, preservam habilidades como conversar e atender o telefone, mas estão sob cuidados médicos e da família. A simples saída da mulher para resolver um problema levou o marido a fazer a assinatura de nove revistas ao mesmo tempo.”

A mulher só foi perceber quando chegou o extrato do cartão de crédito com as nove assinaturas de revistas que ele nunca leu nem vai ler, pois está com perda de memória e deficiência cognitiva. Outra vez a via-sacra: nenhum órgão responsável conseguiu desfazer o que alguns vendedores são capazes de aprontar com os idosos. Ela teve de mandar desligar o telefone por alguns meses para que ninguém incomodasse seu marido num momento de vida em que ele está tão frágil, pois “é um gasto extraordinário, que pesa no orçamento”, diz.

Há muitas formas de violência contra o idoso, além dos maus-tratos, da negligência e do abandono. Minha própria mãe, aos 90 anos, recebeu em seu apartamento um vendedor de enciclopédias que conseguiu lhe vender uma coleção que nenhum de seus netos, com mais de 20 anos, poderia usar. Era uma enciclopédia para o ensino fundamental, que ficou guardada no fundo do armário por muito tempo. Fora as contribuições para asilos e entidades de caridade, que chegavam a mais de seis. Se não era por telefone, eles apelavam para a campainha do apartamento, que ela abria sem nenhum receio, pois não desconfiava de ninguém a certa altura da vida.

Além de abrir a porta para estranhos, de comprar o que não precisava, ela ainda oferecia café. Muitas vezes, cheguei a tempo de evitar, mas nem sempre há disponibilidade da família para com as pessoas mais velhas. Cheguei a tratar mal alguns vendedores que insistiam, mas eles não se intimidam com nada. Esperam o momento certo para agir e passar para trás senhoras que viveram em outro tempo e não estão preparadas para um mundo tão desajeitado.

No momento em que a medicina torna possível viver até os 100 anos é preciso lembrar que a sociedade brasileira não está amadurecendo no mesmo ritmo. Há uma cultura de tirar proveito, mesmo que ao abrir a porta surja uma senhora de bengalas, com os cabelos brancos, as pernas trôpegas. Mesmo que ao telefone a voz revele as marcas do tempo e os ouvidos cansados de tanto ouvir não filtrem mais os sinais de abuso. A essa altura, qualquer um que esteja disposto a ouvir o idoso será bem-vindo, porque há uma solidão incurável. Só quem é velho no Brasil pode contar.


Fonte: Jornal Estado de Minas - Déa Januzzi, em 29/11/2009

12 comentários:

  1. Calam fundo suas palavras em letras de um bem abordar o tema, fragilidade talvez seja a palavra que melhor defina o aspécto abordado em seu post!
    Gosto muito do conteúdo e abordagem de alguns temas recorrentes em seu blog, nos faz pensar e quem sabe melhores! beijos muitos e meu sempre obrigado.

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